Falar sobre escrever e da importância deste ofício na minha vida mexe profundamente com as minhas origens. Me faz ver todo o percurso traçado até aqui e que foi permeado por momentos e situações relacionadas ao texto, às palavras. Assim, acredito que a escrita me ajudou a me descobrir. É mais ou menos essa a ideia que vem à mente quando penso em tratar do ato de escrever.
Nasci na zona rural de uma pequena cidade no sertão paraibano. Vivenciei os últimos anos da ditadura, anos seguidos de secas no Nordeste. Na minha infância não tive acesso aos livros e passei por muitas dificuldades para estudar. Morava num sítio e para chegar à cidade era necessário atravessar o açude. Morava literalmente na outra margem, na que ficava à margem, esquecida. A travessia durava em média uma hora de barco a motor e duas horas ou mais de canoa. Mas foi lá nesse lugar, sem muitas perspectivas que fui alfabetizada por minha mãe e estudei até a terceira série do ensino fundamental (hoje, segundo ano). Foi lá que um dia escrevi o meu primeiro texto e percebi que poderia escrever uma história diferente para a minha vida.
Era noite de Natal e minha mãe fazia as celebrações do “Natal em família”, encontros de oração e reflexão em preparação ao Natal. Naquele ano havia um motivo todo especial para o encerramento do novenário: meu irmão, que tinha migrado para o Rio de Janeiro em busca de trabalho e sobrevivência, estava de férias e chegara exatamente naquele dia. Minha mãe estava numa felicidade só. Para aquela noite me incumbiu de escrever uma mensagem de Natal para a comunidade. Tarefa um pouco complexa e desafiadora, mas que não me amedrontou. Li os textos do livrinho da novena. Li também a narrativa bíblica sobre o nascimento de Jesus e escrevi. Acho que foi minha primeira crônica. Infelizmente perdi aquele texto.
À noite, terminada a novena, minha mãe me convidou a fazer uma mensagem de natalina para a comunidade. As pessoas aplaudiram e pareceram aprovar meu texto. Fiquei feliz. Mas a felicidade foi maior no outro dia, quando meu irmão me pediu que passasse aquele texto para outra folha. Ele queria levá-lo para mostrar ao chefe, na empresa onde trabalhava. E ele ainda me fez gravar aquele texto, todo orgulhoso da irmã. De volta para o Rio de Janeiro ele levou o texto nas duas versões. Disse que ganhou muitos elogios.
Por que visitar esse fato? Porque acredito que naquele momento a escrita me fez sentir que poderia ir além daquele pequeno pedaço de terra. Poderia ir até a outra margem. Vi que aquele ato de pegar uma folha e sair, como diz João Cabral de Melo Neto, catando as palavras como quem cata feijão, poderia me ajudar a descobrir minhas potencialidades. Depois desse primeiro encontro com a escrita, vivenciei outros, como ao defender meu TCC da Graduação, que ouvi os avaliadores sugerirem a publicação daquele trabalho. Conselho que se repetiu na defesa da dissertação de Mestrado. Mas tudo vem no momento certo. E o momento certo de mostrar minha escrita para o mundo veio mais claramente com a pandemia.
É verdade que após a conclusão do Mestrado publiquei meu primeiro livro, uma pesquisa voltada para o ensino de língua portuguesa e os usos dos gêneros digitais, especialmente o Facebook. Mas naquele momento, mesmo tendo convicção de que aquela pesquisa era necessária e deveria chegar até o maior número possível de professores, não me dediquei o suficiente à sua divulgação e meio que me aquietei. Parecia que a missão estava cumprida. Mas não estava. E ao apresentar aquele livro para um amigo professor ele me fez uma profecia meio intimidatória. Disse-me que eu deveria continuar a escrever, mas que o próximo livro deveria ser de crônicas. Eu costumava escrever algumas crônicas de situações vivenciadas na sala de aula e ele era meu leitor-beta. Na verdade, era um leitor crítico que me ajudava e ajuda bastante.
E eis que chega a pandemia. Junto com ela vieram muitos outros grandes desafios. E foi hora de me voltar novamente para aquela atividade que me trazia luz, alívio e prazer, tudo junto. Mas agora essa atividade passou a ter um sentido maior, mais amplo. Era porta e janela, era um canal através do qual eu poderia, além de me ajudar, ajudar outras pessoas por meio dos textos. Essa descoberta me fez olhar a escrita agora como ofício. Um ofício que tenho um grande prazer em exercer. Porque escrever é buscar olhar a vida e as situações por vários ângulos, favorecendo ao leitor também essa oportunidade.
Assim, por meio da escrita, mesmo isolada, mesmo tendo que superar a dor da morte do meu pai pela Covid, sozinha com minha filha, sem poder abraçar meus irmãos, porque precisava ficar isolada daqueles que estavam em contato com o meu pai, pude, por meio dos poemas, ressignificar a situação e me sentir compreendida e acolhida. Diria abraçada. Cada texto era um abraço em mim, um abraço em tantas e tantos outros que também estão passando pela dor da perda.
Pela escrita me senti abrindo outras portas. Se a porta para a rua estava fechada por conta dos riscos de ser infectada por essa terrível doença, a escrita me fez ultrapassar as diferentes fronteiras. Escrever, mesmo que seja apenas um poema por dia, faz parte do meu viver, todos os dias. Não apenas escrever, mas publicar, compartilhar. Para que o mesmo bem que aquele texto me fez ao escrevê-lo, faça às outras pessoas ao lê-lo. Por isso, ao me reconhecer escritora, passei a exercer a escrita como ofício e não mais como uma atividade paralela. Um ofício que busco desempenhar com muito esmero.
Como dizia Clarice Lispector, "a palavra é o meu domínio sobre o mundo".
É mais ou menos assim que tenho compreendido a escrita. Esse espaço de liberdade para intervir no mundo. Seja no mundo interior, seja no exterior. Escrever me traz essa liberdade. Escrever me abriu portas. Escrevo para oferecer portas aos leitores.
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